By : Novembro 4th, 2021 #umdiadecadavez 0 Comments

Quando cheguei a Lisboa, um dos primeiros locais que visitei foi uma loja histórica mesmo na praça do Rossio, a Madeira Shop.

Lembro que o que mais me impressionou ao entrar nesta loja foi um casal idoso que me recebeu com extrema gentileza. Eram os donos deste local que, durante gerações, está nas mãos da família Abreu.

E então, para contar a nossa próxima história, decidimos ir lá.

 

De um lado da praça do Rossio, à direita de Pedro IV, que domina a praça do alto de uma coluna, entre lojas modernas e marcas internacionais, ergue-se a loja Madeira, inaugurada em 1959.

E para nos receber desta vez é a Ana, filha daquele casal que me acolheu anos atrás durante a minha primeira visita.

Ana começa a falar-nos sobre como nasceu este lugar, mas sobretudo sobre a sua família porque, logo descobriremos, as duas histórias estão intimamente ligadas.

 

Ana começa a contar e descobrimos que tudo começa com o seu avô, António Abreu, natural da ilha da Madeira que se muda para o “continente” com  cinco dos seus sete filhos (dois nasceram logo em Estoril). Ana conta que nunca conheceu o seu avô, pois ela nasceu quando os seus pais já tinham 41 e 39 anos, e o seu avô já havia desaparecido na época. Mas a memória daqueles tempos e de como tudo começou, a Ana herdou-o dos pais e hoje nos ajuda a reconstruir a sua história.

Quando a sua família se muda para o “continente”, estabelece-se no Estoril. Provavelmente para ficar perto do mar. Afinal, sabemos bem, quando se cresce numa ilha, cercada pelo mar, é impossível ficar muito longe dele.

A grande mudança veio em 1916 com uma personagem que foi responsável por uma importante mudança no turismo português: Fausto Figuereido, que, para além de lançar a construção do casino do Estoril, deu origem também à linha ferroviária que, com o tempo, irá ligar o Estoril a Lisboa. A consequência desta importante mudança será um importante incremento turístico que trará novos clientes internacionais à loja inaugurada nesta zona costeira.

A família Abreu começa a abrir mais lojas, a primeira no Estoril, logo uma em Lisboa, e seguiram mais uma em Sintra e mais duas em Lisboa, sendo a última o Madeira Shop, que será gerida pelos pais de Ana. Uma atividade comercial, mas acima de tudo uma herança familiar. Começada com o avô, depois com o pai de Ana e agora com ela e o marido João.

Ana conta que o seu negócio passou por várias crises, começando pela que se seguiu à revolução dos cravos de 1974 que acabou com a ditadura, passando pela crise da bolsa de valores nos Estados Unidos, a crise económica de 2008 e, finalmente, a pandemia do último período. Muitas provações e momentos de crise a superar, mas a cada vez conseguiram seguir em frente, sobretudo por orgulho, para não perder essa tradição que é tão importante para a sua família.

A Ana diz-nos claramente que a principal razão de continuarem com a tradição da sua loja não é o ganho financeiro, mas sobretudo a vontade de não interromper uma tradição familiar que perdura há muitos anos.

Vários produtos podemos encontrar na loja e são  de diferentes regiões de Portugal, mas acima de tudo um excelente produto que é também o que dá nome à loja: os Bordados da Madeira.

 

A origem do bordado madeirense remonta à antiguidade e à necessidade de decorar os espaços. A arte do bordado foi durante muito tempo uma atividade a que se destinaram as mulheres das classes mais abastadas e também as religiosas e o grande impulso surgiu nos anos 1950.

Mesmo esta tradição artesanal participou da Grande Exposição das Obras da Indústria de todas as Nações em Londres em 1851, obtendo enorme sucesso.

É um bordado sobre linho que, pela sua delicadeza e tradição, sempre foi um produto de luxo que se encontrava nas casas aristocráticas. E hoje é considerado o melhor bordado do mundo.

A família da Ana sempre se dedicou aos “bordados da Madeira”, primeiro na venda deste produto em Lisboa e logo, com o successo das lojas, abriu também uma fábrica na Madeira depois, que com o tempo fechou pois seguir a produção à distância se tornava complicado.

Ainda hoje são produtos caros e objectos de grande valor, que têm como compradores principalmente turistas, que sempre fizeram parte dos seus clientes habituais, desde os tempos da primeira loja do Estoril. Mas Ana conta que muitas famílias portuguesas também compram linho bordado para enriquecer o património familiar ou, por exemplo, uma toalha de mesa para usar em ocasiões especiais. São objectos que passam de mãe para filha e que muitas vezes permanecem na família por várias gerações, acabando por se tornar guardiães de memórias e histórias, momentos especiais a recordar, festas familiares a não esquecer.

E numa época em que se fala tanto de sustentabilidade, os produtos artesanais desta qualidade são certamente um suporte importante.

E a memória transmitida através dos objetos comprados faz com que Ana e sua família de alguma forma acabem fazendo parte dessa memória também.

A Ana mostra-nos um caderno onde clientes habituais, estrangeiros e portugueses, clientes que várias vezes regressaram à loja, deixam uma memória, uma história, um agradecimento por algo que, comprado na Madeira Shop, passa então a fazer parte da história de família. Ana conta que neste período pandémico tem recebido ligações e recados de clientes preocupados com ela e com os pais, sinceras expressões de afeto.

A Ana começou a trabalhar com a família em 2003, mas desde 2008 tem vindo a trabalhar na loja da família de forma mais ativa e com a ajuda ativa do seu marido João.

Os pais de Ana, Joaquim e Maria Antónia Abreu, têm agora 86 e 84 anos, mas não foi a idade que os afastou do trabalho, mas sim a pandemia. Mas Ana nos conta que de vez em quando não resistem e voltam à loja e, quando não conseguem, exigem de Ana um relato completo de tudo o que aconteceu durante a jornada de trabalho no final do dia.

Até 2019 nunca faltou a sua presença na loja, enquanto a Ana e o João os apoiavam na loja e, ao mesmo tempo, cuidavam de viajar pelo país em busca de peças de artesanato únicas.

Uma olhada na loja imediatamente nos faz entender que não se trata de uma loja comum, nem mesmo de objetos comuns. Ana conhece a história de cada objeto, ouvi-la é como uma viagem pela história das tradições portuguesas, ela sabe mostrar-nos cada escola ou artista que está por trás de cada objeto. Porque os escolheu um por um, conheceu os artesãos, os viu trabalhar.

E os objetos mais frágeis, Ana e João os carregavam pessoalmente.

Porque este trabalho é também uma forma de preservar e transmitir a tradição familiar e o amor que os seus pais sempre tiveram por este trabalho.

     

Ana guia-nos entre os objectos de cerâmica de Coimbra inspirados em obras dos séculos XV e XVIII, o clássico barro pintado à mão, o Galo de Barcelos, símbolo da fé e da justiça e boa sorte e hoje também um dos símbolos do país, o “Figurado” representado por artistas mais modernos e refinados e outros mais antigos que ainda transmitem uma arte milenar de representações sagradas e da vida quotidiana no campo. É inevitável a tradição romântica dos lenços dos namorados, que antigamente as mulheres bordavam à mão para o homem amado e que o homem tinha que usar no domingo na missa para mostrar que correspondia aos sentimentos da mulher em questão.

     

E não faltam os azulejos tradicionais, os móveis pintados do Alentejo, e tantos outros objetos, extraordinárias obras de artesanato.

Aos bordados da Madeira juntam-se aos de Viana do Castelo, igualmente bonitos mas menos caros, para lhe permitir chegar também a outros clientes.

E não faltam roupas tradicionais da Madeira e de Viana, que muitas vezes são compradas por turistas mas também por emigrantes portugueses que levam consigo um pedaço do seu país. Para as crianças também são comprados como vestidos de carnaval, enquanto as famílias do norte ainda os usam em festas tradicionais, como a dedicada a Nossa Senhora da Agonia (20 de agosto, nota do editor) ou em alguns eventos especiais.

Em suma, um lugar onde em cada prateleira, há um novo mundo a descobrir.

A loja da Ana, reconhecida pela cidade de Lisboa como uma “loja com historia”, na verdade não está muito protegida pela própria cidade.

Os tempos mudam, a cidade de Lisboa evolui, moderniza-se, e ao longo dos anos as marcas internacionais têm vindo a substituir cada vez mais o antigo pequeno comércio local.

Mas basicamente são estas lojas que contribuem para fazer de Lisboa uma cidade especial e diferente das outras.

Juntamente com o aumento do turismo que, diz Ana, é obviamente bem-vindo, seria desejável poder proteger de alguma forma estes antigos comércios da cidade para que não desapareçam.

Afinal, já não se trata apenas de um local comercial, mas de um espaço que dia a dia tenta preservar a memória de um passado que às vezes é difícil de reconhecer, a memória dum lugar e, neste caso, de uma família realmente especial.

By : Novembro 16th, 2020 Artesanato, Tradições 0 Comments

Quando visitamos uma cidade portuguesa, uma das primeiras características que observamos encontra-se em baixo dos nossos pés. Estou a falar da calçada portuguesa, verdadeira obra de arte em pedra que com vários desenhos decora as cidades lusitanas.

Mas qual é a historia e a origen?

Há uma historia que nos diz que a calçada portuguesa tem origem por causa de um rinoceronte. Lembram-se do Ganga, o rinoceronte branco de D Manuel? Se ainda não o conhecem, podem ler a sua historia no meu artigo do dia 29 de outubro (https://lisbon-a-love-affair.com/pt/2020/10/29/o-rinoceronte-do-rei/)

Ora, tudo começa então com a chegada do rinoceronte.

No aniversário do Rinoceronte que só saia uma vez por ano no inverno no dia 21 de Janeiro, era organizado um enorme cortejo que saia às ruas de Lisboa ostentando as novas riquezas do rei chegadas do oriente. Nesse cortejo não poderia faltar Ganga, obviamente e para que o rinoceronte ricamente ornamentada não chafurdasse na lama, sujando-se a si e aos que o rodeavam, D. Manuel ordenou que se calcetassem as ruas por onde o cortejo iria passar. 

São as cartas régias de 20 de Agosto de 1498 e de 8 de Maio de 1500, assinadas pelo rei D. Manuel I de Portugal, que marcam o início do calcetamento das ruas de Lisboa, mais notavelmente o da Rua Nova dos Mercadores (antes Rua Nova dos Ferros)

Foi utilizado neste calcetamento granito vindo do Porto, no entanto o seu transporte tornou o trabalho dispendioso para os cofres do reino, mas o Rinoceronte merecia

Surgia assim a Calçada à portuguesa, mais irregular que a conhecemos hoje, mas era o seu inicio.

Posteriormente, o terramoto de 1755 destruiu grande parte da cidade e com ela as suas ruas calcetadas. Mas só em 1842 Lisboa voltaria a ver uma calçada reconstruída, desta vez com pedras de calcário, geralmente brancas e pretas, material abundante na região. Deste modo, aplicavam-se pedras praticamente cúbicas, que é como as conhecemos hoje em dia e em todo o mundo por onde Portugal deixou marca.

O trabalho foi realizado por presidiários (chamados grilhetas na época), a mando do Governador de armas do Castelo de São Jorge, o tenente-general Eusébio Pinheiro Furtado.

O desenho utilizado nesse pavimento foi de um traçado simples (tipo zig-zag) mas, para a época, a obra foi de certa forma insólita, tendo motivado cronistas portugueses a escrever sobre o assunto.

Após o sucesso da empreitada foram concedidas verbas a Eusébio Furtado para que os reclusos pavimentassem também a Praça do Rossio, numa extensão de 8.712m². Esta obra terminou em 1848, com desenhos a homenagear os descobrimentos portugueses, e ficou conhecida como Mar Largo. Rapidamente se espalhou esta moda pelo país e pelas colónias, onde foram produzidas autênticas obras-primas nas zonas pedonais, enobrecendo o espaço público urbano, num ideal de modernização das cidades.

A Baixa de Lisboa transforma-se com a maioria das suas ruas a serem calcetadas a basalto, entre elas o Largo de Camões em 1867, o Príncipe Real em 1870, a Praça do Município em 1876, o Cais do Sodré em 1877 e o Chiado, finalizando em 1894. A abertura da Avenida da Liberdade dá-se em 1879 e em 1908 chega finalmente ao Marquês de Pombal com largos passeios onde foram introduzidos belos e deslumbrantes tapetes de desenhos, que fazem de Lisboa a cidade referência deste tipo de pavimento artístico.

Mas a calçada não se encontra só em Portugal. No séc. XV os territórios de além-mar de influência portuguesa também viram a pedra da mesma origem revestir os seus arruamentos

 

Isto deveu-se ao facto de muitos dos navios que partiam para esses destinos irem vazios, a fim de regressarem carregados de bens e mercadorias locais, e por isso terem necessidade de aumentar a sua carga e assim garantir a sua estabilidade de navegação – o chamado lastro. A solução encontrada foi carregar as embarcações de pedra portuguesa à partida de Lisboa.

 

Um exemplo longínquo desta expansão da calçada portuguesa é Macau – antigo território administrativo português e talvez o território fora de Portugal com a maior área de calçada. Os motivos dos desenhos são, na maioria, de caravelas, rosas-dos-ventos, conchas, peixes, estrelas ou ondas do mar. Nem mesmo depois de 1999, aquando a transferência de soberania para a República Popular da China, essa área diminuiu, antes pelo contrário, ainda hoje este tipo de pavimento é implementado, até por calceteiros chineses, formados por mestres portugueses.

Actualmente, podemos ainda encontrar antigos pavimentos de calçada portuguesa no Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Índia ou Timor. Ou até encontrar novos exemplos, como acontece em Espanha ou nos E.U.A.

A técnica

Os calceteiros com o auxílio de um martelo, fazerem pequenos ajustes na forma da pedra, e utilizam moldes para marcar as zonas de diferentes cores, de forma a que repetem os motivos em sequência linear (frisos) ou nas duas dimensões do plano (padrões). A geometria do século XX demonstrou que há um número limitado de simetrias possíveis no plano: 7 para os frisos e 17 para os padrões. Um trabalho de jovens estudantes portugueses registou, nas calçadas de Lisboa, 5 frisos e 11 padrões, atestando a sua riqueza em simetrias.

Destacam-se as técnicas de aplicação de calçada mais comuns: a antiga calçada à portuguesa, que se caracteriza pela forma irregular de aplicação das pedras; o malhete, semelhante mas com mais espaço entre as pedras; a calçada portuguesa clássica, que tem uma aplicação em diagonal, segundo um alinhamento de 45 graus com os muros ou lancis; a calçada à fiada, com as pedras alinhadas em filas paralelas; a calçada circular; a calçada sextavada; a calçada artística, que se caracteriza pela aplicação de pedras com formatos específicos e/ou pelo contraste de cores; o Mar Largo; o leque segmentado; o leque florentino; e o rabo de pavão.

Os desenhos

Durante muito tempo os desenhos foram elaborados por amadores com muita perícia, tendo geralmente como base motivos tradicionais ligados ao grande feito dos portugueses – os Descobrimentos.

A partir dos anos 50, alguns artistas foram convidados a desenhar motivos destinados à calçada portuguesa.

Nos dias de hoje o papel dos arquitetos é fundamental na concepção de motivos a aplicar a espaços em recuperação, como nas zonas antigas das cidades portuguesas.

São os próprios mestres que criam e desenvolvem novos tipos de aplicação da pedra consoante o gosto e estilo profissional.

Em 1986, foi criada pela Câmara Municipal de Lisboa, uma Escola de Calceteiros com o único objetivo de formar profissionais, e ensinar-lhes os saberes de velhos mestres e assim assegurar a “sobrevivência” da calçada portuguesa.