Não podemos falar de gastronomia portuguesa sem falar dos enchidos. Desde o chouriço à morcela, passando pela farinheira, ninguém recusa uma boa salsicha.
Mas entre os vários enchidos, existem dois que podemos encontrar só em Portugal: a alheira e a farinheira. A diferencia com os outros enchidos está no facto que, quando foram inventadas, essas duas salsichas foram produzidas sem carne de porco. Hoje em dia a receita original não sempre é respeitada, mas na sua origem a farinheira era preparada com farinha, vinho e especiarias e a alheira com carne de caça ou de aves, pão e especiarias.
Mas qual é a origem da ideia de produzir um chouriço sem carne de porco?
A história começa em 1492, quando Fernando de Aragão e a mulher, a rainha Isabel de Castela, conquistam o último bastião mouro da Península Ibérica – Granada – e invadiram o Palácio da Alhambra. Profundos católicos, os reis acreditavam que os judeus praticantes podiam incentivar aqueles que se converteram ao cristianismo a regressar à sua religião original. Contrataram interrogadores para perseguir judeus no seu reino: estamos a falar da Inquisição espanhola.
Diante da Inquisição Espanhola, os judeus espanhóis fugiram para Portugal, onde o rei D. João II deu-lhe hospitalidade até o século XVI. Na época das Grandes Navegações, os judeus exerciam em Portugal um papel importante nos descobrimentos, colaborando com a abertura de novas rotas marítimas e comerciais.
Esse foi o motivo principal para que D. João II permitisse a entrada dos refugiados em território português. O número superou 120 mil pessoas, segundo o site oficial da Rede de Judiarias do país. Alguns foram para ficar e outros utilizaram Portugal como local de passagem.
Sem ter para onde ir, os judeus da península ibérica encontraram uma forma de burlar as punições dos reis fingindo-se cristãos. Assim, participavam das missas, discutiam trechos da Bíblia e escreviam os seus textos em hebreu, nunca em aramaico. A partir de 1496, os judeus portugueses também foram forçados a converter-se ou, em alternativa, sair do país. Durante os dez anos seguintes, cidadãos mais conservadores, matavam judeus diariamente. Em 1536, a Inquisição chegou formalmente a Portugal e tanto judeus como judeus convertidos eram capturados e queimados vivos na pira, diante de um mar de gente, no Rossio.
Os judeus começaram a esconder-se e a formar comunidades em que se faziam passar por cristãos: escreviam em hebreu e fingiam rituais católicos para não levantar suspeitas.
Mas em Trás-os-Montes, o disfarce foi mais original.
Uma das principais maneiras que os membros da Inquisição tinham para descobrir os fugitivos era perceber se estes comiam carne de porco ou não – porque a religião judaica proíbe o seu consumo. Em Mirandela, a 426 km de Lisboa, era comum que as famílias deixassem ao ar livre cachos de linguiças de porco e, assim, era fácil identificar os “estrangeiros”. Os judeus criaram, então, uma “linguiça” feita com pão e frango, que se parecia com a tradicional linguiça de porco, a alheira, que enganou por muitos anos os oficiais da realeza.
As receitas originais exigem muitos pedaços de pão, porque era a forma encontrada pelos judeus para dar consistência à linguiça. Dentro dele, iam carne bovina, de frango, de coelho, de peru ou de pato. Depois, quando a inquisição acabou, a linguiça alternativa teria caído no gosto dos próprios cristãos ibéricos, que passaram a comê-la e incorporaram-na aos pratos típicos — hoje, é considerada uma das sete maravilhas gastronómicas de Portugal.
E das montanhas de Trás-os-Montes difundiu-se para o resto do país.
Hoje-em-dia, a alheira é servida acompanhada de batatas fritas, arroz e um ovo estrelado encima.